Ao lado, a mesma janela. Um pássaro passa
e canta e voa longe. A cada bater de asas, desmancha em riso meu coração
coloidal. Pássaro sádico. Ele, que parado me via enlouquecer no desconhecido,
solta seu grito que me faz voltar ao sonho que outrora sonhei: caçava a
prepotência escandalosa da loucura, em becos e botecos sem
esquina, encontrava faces maquiadas de um mundo
desolado, luvas de sangue, passos ultrapassados. Então um vento bêbado passou
por mim e foi suficiente para assolar minha inútil existência sã. Pude ouvir
uma voz sorrateira dizendo: “Fuja! A fuga... Afogue-se caso eu não venha.”
Vertiginosos gestos dobraram o mundo ao meio, e cuspiram a humanidade galáxias
afora. Tudo estava dentro de um copo!
E num novo grito do pássaro, desligo-me
do sonho. Já é dia, afinal.
E como é possível falar de um dia sem
falar do normal? Sabe aquela história de céu azul, de árvores balançando ao
ritmo de um vento calmo, de um café com pão caseiro às três da tarde? Tudo
isso, começo dizendo que é comum, mas gostaria de apresentá-las de maneira
diferente. Como o farei ainda não sei, e também não me importa saber.
Uma espécie de diário abre-se agora e
derramo nas páginas algumas palavras que não mudarão o meu dia, nem o de
ninguém, mas elas, as palavras, devem sair por uma questão de educação. Sim, de
educação mesmo. Uma borboleta que sobrevoa o copo na pia haveria de confundi-lo
com uma flor? Claro que não, e, assim, não confundirei este discurso com o que
diz que é tudo farsa do ócio e não paz. Por isso, creio que seja educado de
minha parte citar o velho esmero de um dia calmo e bonito. O que foi diferente
hoje não mudou o passado, mas libertou-me dele, e, depois, com outra notícia,
alegrou o futuro, mas também o deixa mais cheio, corrido e responsável. Organizações
já foram feitas e espero apenas o que vem vindo sem pressa, meu horóscopo até
disse que posso aproveitar tudo, mas com moderação. Atroz.
Apesar do encanto deste dia, há o que
incomode. Isso é lei? Musiqueta irritante bem alta embala um “puts-puts” nada
conveniente. Eu poderia, certamente, desligar
esse rádio, não fosse do vizinho. Mas isso é fato passageiro, assim como sou,
passageira devedora da passagem.
Em meu fastio vejo tudo passando, como se
de dentro de um navio me pusesse a esperar pela “terra à vista”. No entanto, o
tédio deste dia não é incômodo ou no mínimo comum e certo; apenas é parte dele,
natural e irredutível. A cadeira em que repouso balança-me com desdém e só por
uma questão de obrigação ela carrega-me hoje. Apesar da cor vermelho vivo, ela
não me engana com essas rodinhas quebradas.
De pés no chão frio, caminho até a janela
para ver mais de perto a realidade doce e sedutora. Volto lentamente para
sintetizar o que vi, e torno a cuspir palavras pelos dedos das mãos, que
incrível! Nada é diferente aqui e ainda assim parece fora do comum.
As vozes do outro lado da parede são
conhecidas, inconfundíveis, mas, porque não falam tanto, confundo-me no assunto
que não é meu, e derrubo vinho sobre a toalha branca. É fantástico ver as horas
desdobrarem-se, levando o sol aos poucos. Tarde é lenda explícita que corrói o
céu sem pena. Quanta sinceridade há numa tarde... Pessoas deveriam ser assim,
reais.
Eu não te levarei a mal se não
compreender tamanha loucura. Um dia comum, com tantos detalhes e verdades, pode
não passar de uma história loucamente desvairada, que esperava apenas uma
vítima incapaz de reconhecer que o conjunto das 24 horas pode confundir
irreversivelmente um ser quieto em seu quarto, e induzi-lo a despir-se da
realidade, e, a partir daí, não condizer mais ao pensamento natural e tornar
qualquer tarde em loucura. O fato é que me entreguei aos prazeres ocultos dos
meus pensamentos. Tirei roupas velhas do guarda-roupas.
Eu não vi a pedra que rolou o morro
ontem, mas vejo a folha caindo agora daquela árvore em frente ao portão. O dia
se esvai.
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