quinta-feira, 24 de maio de 2012

Passageiro


Ao lado, a mesma janela. Um pássaro passa e canta e voa longe. A cada bater de asas, desmancha em riso meu coração coloidal. Pássaro sádico. Ele, que parado me via enlouquecer no desconhecido, solta seu grito que me faz voltar ao sonho que outrora sonhei: caçava a prepotência escandalosa da loucura, em becos e botecos sem esquina, encontrava faces maquiadas de um mundo desolado, luvas de sangue, passos ultrapassados. Então um vento bêbado passou por mim e foi suficiente para assolar minha inútil existência sã. Pude ouvir uma voz sorrateira dizendo: “Fuja! A fuga... Afogue-se caso eu não venha.” Vertiginosos gestos dobraram o mundo ao meio, e cuspiram a humanidade galáxias afora. Tudo estava dentro de um copo!
E num novo grito do pássaro, desligo-me do sonho. Já é dia, afinal.
E como é possível falar de um dia sem falar do normal? Sabe aquela história de céu azul, de árvores balançando ao ritmo de um vento calmo, de um café com pão caseiro às três da tarde? Tudo isso, começo dizendo que é comum, mas gostaria de apresentá-las de maneira diferente. Como o farei ainda não sei, e também não me importa saber.
Uma espécie de diário abre-se agora e derramo nas páginas algumas palavras que não mudarão o meu dia, nem o de ninguém, mas elas, as palavras, devem sair por uma questão de educação. Sim, de educação mesmo. Uma borboleta que sobrevoa o copo na pia haveria de confundi-lo com uma flor? Claro que não, e, assim, não confundirei este discurso com o que diz que é tudo farsa do ócio e não paz. Por isso, creio que seja educado de minha parte citar o velho esmero de um dia calmo e bonito. O que foi diferente hoje não mudou o passado, mas libertou-me dele, e, depois, com outra notícia, alegrou o futuro, mas também o deixa mais cheio, corrido e responsável. Organizações já foram feitas e espero apenas o que vem vindo sem pressa, meu horóscopo até disse que posso aproveitar tudo, mas com moderação. Atroz.
Apesar do encanto deste dia, há o que incomode. Isso é lei? Musiqueta irritante bem alta embala um “puts-puts” nada conveniente. Eu poderia, certamente, desligar esse rádio, não fosse do vizinho. Mas isso é fato passageiro, assim como sou, passageira devedora da passagem.
Em meu fastio vejo tudo passando, como se de dentro de um navio me pusesse a esperar pela “terra à vista”. No entanto, o tédio deste dia não é incômodo ou no mínimo comum e certo; apenas é parte dele, natural e irredutível. A cadeira em que repouso balança-me com desdém e só por uma questão de obrigação ela carrega-me hoje. Apesar da cor vermelho vivo, ela não me engana com essas rodinhas quebradas.
De pés no chão frio, caminho até a janela para ver mais de perto a realidade doce e sedutora. Volto lentamente para sintetizar o que vi, e torno a cuspir palavras pelos dedos das mãos, que incrível! Nada é diferente aqui e ainda assim parece fora do comum.
As vozes do outro lado da parede são conhecidas, inconfundíveis, mas, porque não falam tanto, confundo-me no assunto que não é meu, e derrubo vinho sobre a toalha branca. É fantástico ver as horas desdobrarem-se, levando o sol aos poucos. Tarde é lenda explícita que corrói o céu sem pena. Quanta sinceridade há numa tarde... Pessoas deveriam ser assim, reais.
Eu não te levarei a mal se não compreender tamanha loucura. Um dia comum, com tantos detalhes e verdades, pode não passar de uma história loucamente desvairada, que esperava apenas uma vítima incapaz de reconhecer que o conjunto das 24 horas pode confundir irreversivelmente um ser quieto em seu quarto, e induzi-lo a despir-se da realidade, e, a partir daí, não condizer mais ao pensamento natural e tornar qualquer tarde em loucura. O fato é que me entreguei aos prazeres ocultos dos meus pensamentos. Tirei roupas velhas do guarda-roupas.
Eu não vi a pedra que rolou o morro ontem, mas vejo a folha caindo agora daquela árvore em frente ao portão. O dia se esvai.



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